19 de dezembro de 2012

os cães que morrem de crânio esmagado no asfalto das estradas

nunca tenho bem consciência de que estou a parar de escrever quando paro. ou porquê sequer. mas é garantido que acontece, de tempos a tempos.
agrada-me descrever esses tempos como aqueles meses em que as palavras me fugiam porque eu não as sabia dizer, mas minto sempre que o escrevo.
é algo que deixo de fazer quando não sei mais como o fazer bem. não que o faça quando o faço. mas não custa tanto fazê-lo quando o faço. agora, que o faço, não me parece bem mas não dói. nesses tempos em que não o faço fazê-lo faz doer a alma porque as palavras, quando mal ditas, magoam tanto que nem chorar faz com que a dor percorra com o resto do leito do rio que é a página, nesses tempos.
virgem, imaculadamente branca. freira, porque não há-de nunca ser desflorada.
parar de escrever, dizem-me, é deixer morrer o hábito. matar o hábito é enterrar o dom.
nesses tempos, longos tempos que não param de voltar nunca, é um regresso ao conhecer todas as letras, uma a uma, uma por uma. aprender a amá-las a todas individualmente tudo de novo. são os tempos em que se reinventa a caligrafia, é a altura em que até um cão a morrer tem o seu quê de beleza. porque é nu, cru, porque chegou a hora, porque a morte também sabe ser bonita, porque todo o momento é poético e aquele não deixa de ser um momento, porque sim, porque é.
quando volto a fazê-lo nunca escrevo sobre esses cães que morreram, perfiro os velhos que, com andarilhos, tentaram passar a passadeira e quase eram atropelados, ou as crianças que iam a correr trapaceiras escorregaram e deixaram na pedra do chão, ou os cortes nos pulsos da miúda que caminhava vagorosamente a caminho do liceu. mas dos cães nunca.
há qualquer coisa no momento em que as coisas morrem de tão valoroso e sagrado que torna, para quem assiste, todo aquele enquadramento de horas numa memória tão privada que partilhá-la seria perdê-la. e eu, por muito que possa perder, às memórias não hei-de largar nunca.

1 comentário:

amanhã talvez não