17 de setembro de 2010

vem, vem morder-me o coração - texto dramático (adaptação)


(está um coração feito de papel celofano pendurado vindo do tecto, existe uma corda pendurada de lado a lado a meio do palco. Está um homem na direita baixa)
(foco único no homem)
ELE:        Disseste-me que os rebuçados eram bolas de neve e esse reconhecimento comoveu-me, como se fizesses mesmo parte do meu mundo, como se dominasses uma linguagem interdita aos outros, tão natural para nós.
                Declaraste-me oficialmente o homem do teu Verão. E cumpriste a tua palavra.
                Foi então que descobri o rio nos teus olhos e comecei a amar-te.
Anda, anda morder-me o coração. – Tu, a rapariga das sandálias de pano.
                (Voz Off (Ela): Olhava-te no sono e pensava que sabia exactamente a data em que o amor se iria desfazer. Eu tinha um prazo)/
ELE:        Sorri porque vi o teu nome no chão da piscina. Alguém tinha escrito o teu nome nas pastilhas toscas do tempo. Lia-se: amor.
                (Voz Off(Homens): Estás apaixonado por aquela rapariga? Que engraçado, falei com ela um dia. Sim, disse-me que era do Porto)
ELE:        Foi quando percebi que, afinal, na tempestade de me contar em tudo a ti, como um confessionário, nunca apurei a tua verdade.
                (Iria procurar-te pelo mundo.
                Podias estar em qualquer lado.
                Em qualquer mundo.
                … e a tua frase, sempre a mesma, anda, anda morder-me o coração
                Black-Out parcial (sai Ele, entra Ela – a mulher)
ELA:       A questão não é saber se o amor nos aconteceu. Isso é tão relativo que o silêncio é melhor. Percebe-se melhor. (dirigida ao público)
                Naqueles dias eu achava que não éramos anda, tu e eu.
                (Voz Off(Ele): Tenho esperança de não ouvir falar português para não me lembrar da tua voz: (Ela em Voz Off também) vem, vem morder-me o coração/
ELA:       Podíamos rir e chorar, contar as desventuras da adolescência, as maldades paternas, tudo. Podíamos sem consequências, porque nada do que te disse era verdade e, por isso, me poupava nas palavras, para não te castigar com tantas mentiras.
              Olhava-te no sono e pensava que sabia exactamente a data em que o nosso amor se iria desfazer. Eu tinha um prazo.
              Ficarias em terra, náufrago de mim, sem perceber os destroços de nós.
              Sabia exactamente o vermelho de sangue que te iria escorrer da alma, como uma tinta como um salpico de dor demasiado forte para o teu corpo./

                (Voz Off(mulheres): Mesmo que a liberdade fosse só para os homens)
ELA:       Quando me fui embora, não deixei morada.

(Ele entra e ficam os dois em palco. Ela na Esquerda Baixa e Ele na Direita)
Luz Baixa (meia-luz)
ELE:        Desculpe?... Pensei que fosse outra pessoa.
ELA:       Quem?
Silêncio, não há resposta.
(Quebra do diálogo, entra música, olham ambos em frente, dois focos – um para cada um. Alienam-se da presença um do outro. Sai música.)
O meu primeiro homem foi assim, sem história, e eu a ver as nuvens passar, umas atrás das outras.
               Não me doeu nada, não reparei em nada. Lavei as cuecas, lavei os dentes e fui fazer o jantar para o meu pai.
               Fiquei sem coração aos 9 anos.
ELE:        A minha mãe quer saber se volto aos Açores no Verão. Ainda me fala de ti nas cartas que escreve. Aguardo o teu nome – será esse o teu nome? – nas linhas tortuosas da minha mãe, perco o ar.
               E é só o teu nome. Que pode nem ser o teu.
ELA:       Disseram-me que não se pode quebrar o coração a alguém que já o tem partido.
E eu pensei, Pode.
Podemos sempre partir os bocadinhos do coração em bocadinhos ainda mais pequenos, amachucar ainda mais o que nos resta, como se nos tirassem o último sopro de vida.
Ainda sou tão nova e estou quase a morrer.
ELE:        Vi a fotografia num jornal, na internet.
Eras tu. Eras tu numa fotografia n um jornal, na internet.
                                  «Jovem artista plástica faz tentativa de suicídio»
Fiz uma lista de palavras-chave para te encontrar e, finalmente, pude escrever o teu nome.
                Maria

Queres saber o que sei de ti?
Black-Out total
                (ouve-se o som de comboios, ele aparece de novo só que a correr sempre no mesmo sitio. aos berros, num misto de frustração e delírio, como se a descoberta tanto o acalentasse como o destruísse mais um pouco. Luz vermelha)
HOMEM:             Agora sei que és camaleão. Que te esbates na paisagem para que ninguém te veja e que a tua dor está apenas no contorno da dor dos outros. Como te perdeste algures, vives dos outros. Calculo que não te vejas ao espelho porque se te visses terias medo e fugirias ainda mais.             


                (entra música. a luz vermelha atenua-se. Ela escreve num papel “Tenho do sexo uma ideia fraca” e pendura-o na corda com molas, Ele encontra-se parado no mesmo sitio, exausto depois da explusão)
ELE:        Morder-te o coração, o teu coração incompleto (sussura)
(já normal) Quando disse o teu nome, Maria, ficaste um momento congelada no tempo, depois o teu corpo virou-se e eu vi o amor.
                Pela primeira vez, a verdadeira face do amor.
                Luzes voltam a baixar, sombrio (meia-luz)
               
(eles voltam a consciencializar-se um do outro a partir da primeira fala dele)
ELE:        Maria.
ELA:       O que fazes aqui?
ELE:        Quero ver-te.
ELA:       Mas foi há tanto tempo.
ELE:        Pois foi.
ELA:       Não tenho nada para te dar.
ELE:        Não quero nada. Onde estás?
ELA:       Estou em casa.
ELE:        Diz-me a morada.
                A luz dela aumenta, volta ao foco. (Ele fica em frize)
ELA:       Quando me fui embora, não deixei morada.
                Hoje quero que saibas que não te disse nada e quando te pedi para me morderes o coração era só para me certificar de que ele existia no meu peito.
                Tu preferiste beijar-me, nunca me mordeste e, assim, fiquei sem saber.
                A luz dela apaga-se. (Ela vai até à boca de cena, Ele também, Ela espera que ele se dispa até vestir boxers e peúgas apenas e envolve-o num abraço e, juntos, caminham para trás até chegarem ao estendal/corda. Ao chegarem Ela eleva-lhe os braços e pendura-o lado a lado com o cartaz) A meia-luz apaga-se. Foco sobre Ele.
ELE:        Vou andando pela noite, passo pequeno, sem ilusões, tentando não pensar na forma como a tua voz enrolou o meu nome.
                Tu, depois de me demitires, de nos negares a possibilidade de sermos, tu a gritares, já do outro lado da estrada, com a écharpe no chão.
                Xavier.
                Só porque não te soube morder o coração.       Black-Out | Fim. 
adaptado por Tatiana Rocha, Abril 2010

1 comentário:

amanhã talvez não